Caderno de Estudos
Educação Musical
Nº1
São Paulo, Atravez, Agosto/1990
Conselho Consultivo
Professora Alda Oliveira (Escola de Música/UFBa)
Professora Anamaria C. N. Peixoto (Fundação Carlos Gomes e UFPa)
Professora Berenice Menegale (Escola de Música/UFMG)
Professora Cecília Conde (Conservatório Brasileiro de Música/RJ)
Professor H. J. Koellreutter (Instituto de Estudos Avançados/USP)
Professora Raimundo Martins (Departamento de Música/UFRGS)
Professora Sandra Loureiro de Freitas Reis (Escola de Música/UFMG)
Professora Odette Ernst Dias (Departamento de Música/UnB)
Equipe Editorial
Professora Dora Lúcia Antunes Viana (Instituto da Criança/BH)
Professora João Gabriel Marques Fonseca (Faculdade de Medicina/UFMG)
Professora Maria Amália Martins (Escola de Música/UFMG)
Professora Maria Betânia Parizzi Fonseca (Fundação de Educação Artística/BH)
Professora Rosa Lúcia M. Guia Braga (Escola Villa-Lobos/BH)
Editor
Professora Carlos Kater (Escola de Música/UFMG)
CADERNOS DE ESTUDO é uma publicação da ATRAVEZ, Associação Artístico-Cultural 1988, em convênio com a Escola de Música da UFMG.
Criatividade na escola e Música Contemporânea
O presente texto originou-se de uma palestra proferida em seminário sobre educação musical (Brasília, 1974) –promovido pela Secretaria de Cultura do Distrito Federal- e integra a bibliografia de vários trabalhos elaborados no âmbito do Curso de Mestrado do Conservatório Brasileiro de Música.Que método de trabalho deve ser adotado junto ao educando de modo que ele cresça, intelectualmente, interligado ao crescimento da cultura de sua época?
Uma resposta a essa pergunta seria, evidentemente, aquela que afirmasse ser necessária a permanente prática, na sala de aula, da cultura e da estética de nossa época.
Neste trabalho não pretendo apresentar alguma pretensiosa “grande solução” para o problema. Pretendo, sim, equacioná-lo sob a ótica do compositor de música contemporânea: um compositor que constata o fato de que, caso a atividade educacional continue a trilhar os caminhos que ainda hoje trilha, a música de hoje só passará a ser conhecida no futuro, lá então já como música do passado, e assim mesmo por uma pequeníssima minoria.
É preciso urgentemente lançar os jovens na música de hoje. Seus ouvidos, em geral, estão condicionados e “entupidos” pela música comercial que hoje é industrializada e enfiada, vídeo a dentro, nas salas de nossas pobres famílias. Ao terem acesso à nova e desconhecida arte musical, talvez eles se sintam, de início, um pouco alheios àquele novo mundo sonoro. Mas a experiência mostra que logo depois que se identificam e penetram naquela nova atmosfera de sons, pois logo sentem que o vocabulário caleidoscópico da música de hoje é um mundo tão maravilhoso, tão cheio de sonhos, de temores e de fantasias, quantos o maravilhoso mundo de suas mentes, também cheias de fantasias, temores e sonhos.
Por acaso é necessário, para o jovem, conhecer a linguagem musical do passado, para depois ser iniciado na linguagem musical do presente? Estou certo de que a reposta é não. Se a sucessão cronológica obedece talvez à lógica, e é aplicável com bons resultados à educação de adultos, ela não será forçosamente útil à mentalidade de uma criança ou de um adolescente de hoje, graças aos modernos meios de comunicação e das novas técnicas de audiovisuais, têm oportunidade muito maior de estar em contato com sua época. Hoje não mais eles estão protegidos do mundo exterior, emparedados no ambiente familiar, sendo-lhes, portanto, possível estar em permanente contato com as artes dos séculos precedentes.
Faça uma panorâmica dos métodos utilizados tradicionalmente, criados pelos pedagogos eminentes: Zoltán Kodály, Carl Orff, Maurice Martenot e Jacques-Dal-Croze.
Não queremos criticar nenhum destes métodos, e nenhuma crítica seria possível, pois todos estes métodos são métodos ativos, isto é, educação baseada na atividade da criança, e todos eles alcançam resultados positivos no que se refere ao fim a que se propõem.
Primeira qualidade a apontar: todos eles partem da experiência vivida, para depois desembocar no conhecimento teórico.
O método Orff enfoca a música fundada no aspecto rítmico aplicado à linguagem. Parte-se de uma palavra, busca-se o acento tônico da palavra e seu ritmo. Logo a seguir o professor escolhe uma frase que ele diz, sem marcar seus acentos. A criança por si mesma descobre estes acentos imbuindo-se do ritmo. O ritmo da frase é acompanhado pelas crianças através de instrumentos de percussão. Descoberto o ritmo próprio da frase, as crianças deverão a seguir adornar este ritmo com uma melodia. Cada criança propõe sua versão e é escolhida a melhor. A seguir agrega-se o acompanhamento com sons percussivos de altura determinada: xilofones, metalofones, etc.
Assim, a compreensão do pensamento musical se realiza após a experiência. E o método, brilhantemente, conduz, à improvisação coletiva que resultado em trabalho de socialização, devendo as crianças se escutarem mutualmente. Mas, no plano melódico, o método é calcado no tonalismo. Os instrumentos de Orff de altura determinada estão construídos de acordo com o sistema tonal. E é a tônica que serve de base ao acompanhamento.
Orientado para a organização das alturas, no sentido de um sistema musical do passado, o método não pode evidentemente facilitar um enforque da música de hoje.
O método do francês Maurice Martenot não difere muitos nos meios e nos fins. Segundo Maternot, a criança tem as mesmas reações psicosensoriais e motoras que os homens primitivos, e, portanto, possuem o instinto do ritmo, que deve ser o primeiro fator desenvolvido, em forma bruta, sem aplicação de parâmetro de altura. O método, de início, abandona as possibilidades melódicas, assim como a noção de medida. Mais a diante improvisam-se diálogos, fórmulas rítmicas, a título de perguntas e respostas, educando reflexos, desenvolvendo a memória rítmica, o canto interior e a representação mental, que vem a ser a primeira etapa do pensamento musical.
Quanto à parte teórica, à escrita e à leitura, tudo se transforma em jogo, brinquedo, que coloca em prática as associações visuais-motoras do jovem. Aqui a psicologia da criança é trabalhada em profundidade, pois os esquemas de cognição são interligados às ações lúdicas espontâneas.
O material didático utilizado consta de jogos de dominó com mínimas, semínimas, colcheias, etc. Joguinhos de quebra-cabeça, loto, cubos, etc.
A Aplicação do parâmetro altura vem mais tarde. O professor canta um som, os alunos improvisam nas vizinhanças daquele som, construindo melodias. Nascem esboços de frases. O professor canta uma frase detendo-se na Dominante, e as crianças completam a frase caindo, fatalmente, na Tônica.
O método do húngaro Zoltán Kodály, como os demais métodos, dá primazia ao ritmo. Aqui o ritmo é levado as consequências que maram uma consciência corporal. A criança não usa instrumentos musicais, mas caminha ou marcha batendo palmas, exteriorizando, em pulsações rítmicas, as “arsis” e as “tesis” das melodias folclóricas húngaras. Aqui as melodias em geral são pentafônicas, mas sempre dentro do sistema tonal ou modal.
Enfim, todos os métodos alcançam os mesmos fins: musicalizam a criança, alimentam sua capacidade mental, mas não demolem as barreiras da incompreensão da música de nosso tempo.
Surgiram também bifurcações, variantes, ou misturas daqueles diferentes métodos: seguidores de Dalcroze se utilizando de alguns recursos do método Martenot, o método Kodály misturado ao método Orff, etc.
Os anos 60 viram nascer, à luz das teorizações de Ana Maria Porto, um método brasileiro que a saudosa mestra desenvolvia na Escola Nacional de Música. Mas o método de Ana Maria Porto era calcado nas experiências anteriores de Maria Junqueira Schmidt e Antonio de Sá Pereira, as quais, por sua vez, se inspiravam nos tradicionais métodos citados. Havia sucesso no trabalho musicalização de crianças, mas sempre restrito ao contexto da música tonal tradicional.
Quanto aos objetivos da musicalização e da educação artística dos jovens, todos estão de acordo. Não se trata de querer transformar cada uma das crianças em um pianista, ou em um músico profissional. Evidente, pois para isto são necessárias considerações quanto à estrutura da inteligência desenvolvida, os interesses ou talentos especiais, e as oportunidades oferecidas pelo meio.
O grande objetivo da Educação Musical deve ser o de prestar ajuda ao desenvolvimento da sensibilidade do jovem às coisas que nos rodeiam. Não deve existir a preocupação de produzir artistas. A finalidade deve ser a de dar meios, à criança, que a ajudam a crescer, sem julgamentos da livre expressão artística infantil, sem considerações de ordem “bonito-feio”. Mas ainda, a meta da educação será realçar e alimentar a capacidade mental da criança, tentando fazer com que desabroche, em cada uma, todo seu poder latente.
Como dizia Rabelais: “a criança não é um vaso que se enche, mas sim um fogo que se acende”.
O bom educador é aquele que não quer dominar o grupo escolar, dando-lhe apenas aquilo que ele julga conveniente. O bom educador aproveita as próprias sugestões e interesses da criança para motivar o ensino. E, portanto, sua qualidade primeira será a de possuir a capacidade de compreender ou perceber as necessidades da criança.
Estas necessidades são, em geral, diferentes para cada criança. O trabalho alcançará certamente bons resultados a curto prazo, na medida em que a criança venha de um ambiente familiar onde a música seja um hábito: seja porque os pais são músicos, seja porque de hábito eles frequentam concertos ou possuem uma boa discoteca.
A escola deveria, portanto, assumir aquele papel que a família não pôde assumir no campo das artes. E o educador, que tem como incumbência educar o gosto da criança, deve ele mesmo saber escolher a música e o método que ao grupo deva ser levado com urgência.
Se o educador ressaltar a ânsia de descobrimento da criança, a sua curiosidade, o jovem adquirirá seu bom crescimento e o equilíbrio que mais tarde se consolidarão por si mesmos.
No final dos anos 60 no Rio de Janeiro, e mais exatamente no final de 1967, um grupo de professores dos Instituto Villa-Lobos, que funcionava no antigo “prédio da UNE”, daria início a uma série de discussões e teorizações que viriam abrir caminhos novos no domínio da nova educação musical. Este grupo era integrado por mim mesmo, Esther Scliar, Emílio Terraza e Reginaldo Carvalho. O consenso surgia e passou-se então a ser preconizado o trabalho, junto a criança, diretamente com a matéria sonora, tentando acabar com a descriminalização que se fazia, até então, entre o chamado “som musical” e o chamado “ruído”.
O trabalho desenvolvido, nos anos 70, por Emílio Terraza, Conrado Silva, Fernando Cerqueira e outros, daria, lugar a metodologia que é hoje conhecida pela sigla OBM. A filosofia da “oficina”, esta sim, tem conseguido fazer com que educadores e educandos dêem lugar à vazão e à fluência livre da criatividade, permitindo que novos ouvidos se formem, atentos aos sons e à música de nosso tempo.
Mas é preciso não confundir criatividade com execução de tarefa imposta. É preciso distinguir-se ao jogo espontâneo da representação ou interpretação improvisada.
Alguns compositores do Brasil e do exterior já realizaram com sucesso aquilo a que erroneamente chamavam de sessões de criatividade. Pediam que público jovem trouxesse à sala de concerto fontes sonoras caseiras: pratos, panelas, papéis, rádios de pilha, apitos, etc. A chamada sessão de criatividade constava da realização de partitura pré-fixada pelo compositor. Através de gestos o compositor “reagia” a plateia, apontando onde deveriam entrar os rádios de pilha, onde seu volume de som deveria ser diminuído, onde entrariam os apitos, etc. Realizando a peça de música pré-determinada pelo compositor.
Isto não é criatividade, pois esta prática faz com que a criança se acomode ao problema proposto. Na sessão de criatividade verdadeira realiza-se o jogo espontâneo. Nesta atividade a criança assimila a situação estética sem acomodações a sistemas fechados de criação. Aqui a criança brinca, se exprime musicalmente, ao sabor de sua fantasia.
A criança que goza de liberdade e de estímulo cria livremente, conservando sua originalidade. Ela por si só encontra meios próprios de cantar, de dançar, de utilizar as fontes sonoras.
Quem conhece o repertório vocal e coral da Música Contemporânea, observa que os efeitos vocais utilizados pelo compositor de hoje são em sua maioria aqueles mesmos efeitos vocais que a criança gosta de realizar e os realiza espontaneamente.
O folclore dos jogos infantis mostra grande quantidade de linhas melódicas que nada têm a ver a com sistema tonal e a escala temperada. Nos morros do Rio de Janeiro, o moleque que empina papagaio canta, desafiando seu companheiro, a frase: “tá com medo tabaréu, tá com linha de carretel”.
Se quisermos fixar no papel pautado as diferentes linhas melódicas dadas a esta frase, teremos que usar melismas, glissandos e microtons, de que a notação musical tradicional não dá conta.
E o grave problema que de vez em quando constatamos, é que a tradição escrita destrói a tradição oral. Já encontrei, anotados por folcloristas e pedagogos brasileiros em papel pautado, alguns dos pregões do Rio antigo (e que em alguns bairros cariocas ainda hoje encontramos) com uma notação tradicional dentro da escala temperada, que nada tem a ver com o pregão ouvido originalmente.
Como material didático aconselharíamos qualquer fonte sonora: desde o próprio instrumento Orff, até o jogo de garrafas, corpos, latas, etc.
Deve ser dada à criança oportunidade de explorar todas as possibilidades sonoras dos instrumentos ou objetos.
Por si mesma, a criança certamente descobrirá os sons e as maneiras de tocar que interessam à sua expressão.
Quando uma criança rabisca uma folha de papel, às vezes ela não vincula nada ao simples prazer que experimenta ao descobrir e desenvolver seu domínio do movimento. Muitas vezes a criança está simplesmente praticando seus rabiscos e as possibilidades de movimento de sua mão e de seus dedos. Daí ser errôneo querer saber da criança o que ela está desenhando. Ela não saberá responder. É o momento em que não tem sentido pedirmos à criança que ela desenhe uma laranja. Laranja é coisa de comer, de se cheirar, de se ter às mãos. E não coisa para ser desenhada.
Se desenhamos uma laranja e pedimos para que a criança imite, ela tentará imitar, e não fará outra coisa.
A descoberta do ritmo pela criança, acreditamos, também não deveria ser baseada no método da imitação. E mesmo no caso em que a criança espontaneamente quisesse imitar células rítmicas, ou sons da natureza, ou sons ambientais, creio ser oportuno que realizasse a imitação a seu modo.
Uma coisa é a realidade sonora objetiva como nós, adultos, a percebemos. Outra coisa é o que a criança ouve ou expressa mediante sua criação artística. O centro de interesse da coisa percebida, às vezes, não é o mesmo para o adulto e para a criança. A criança agiganta, em sua representação, tudo o que ela percebe como de maior importância. Uma criança que percebe a figura de seu pai como quem tem uma cabeça e duas pernas compridas, desenhará seu pai com uma cabeça e duas pernas compridas, deixando de lado todos os outros detalhes sem importância.
Mas, por outro lado, seria errônea pensar que tudo o que a criança realize por meio de sons deva ser elogiado. Não há razão para elogiar suas realizações musicais a não ser que mereçam. A criança pode saber que não se concentrou no que fazia e que seu trabalho não tem nenhum valor para si. O elogio neste caso serviria apenas para destruir a confiança depositada pela criança no educador. Os indícios fornecidos pela própria criança deveriam ser os fatores a demonstrar o valor que a criança dá em seu próprio trabalho. E como indício referimo-nos à própria existência ou inexistência de um entusiasmo espontâneo por parte da criança.
Outra coisa que cremos ser de suma importância é saber quando emitir críticas e sugestões à criança. Deveríamos, portanto, orientar e ressaltar este crescimento. Não importa o resultado final, seja ele musical ou não. O que importa é o processo de pensamento que se torna operativo quando a criança enfrenta problemas.
A meta da Educação Musical, que é meio de educação e não um fim, é o desenvolvimento do pensamento musical. E são mais importantes as atenções a serem dadas ao pensamento, do que aquelas a serem dadas ao aspecto musical deste pensamento.
O mundo sonoro da Música Contemporânea abrange o restrito mundo sonoro da Música Tradicional. O conjunto sonoro da Música Tradicional. O conjunto sonoro da música tradicional é um caso particular daquela da Música Contemporânea. E somos dos que crêem que o mais producente é partir do geral para o particular.
A criança que é introduzida à nota D6 do piano e a nota D6 sustenido, e que reproduz com sua voz aquelas alturas e aquele intervalo melódico, passa a se desvincular dos intervalos microtonais que é capaz de produzir espontaneamente e que são vocábulos da linguagem musical contemporânea.
A criança que é levada a produzir ritmos isócronos, e somente os isócronos, passa a se desligar da rítmica não-isócrona da Música Contemporânea.
A faixa etária dos jovens que frequentam a escola entre o pré-escolar e o 4º ano da Escola de primeiro grau, ou seja, a faixa que vai dos 5 aos 10 anos de idade, constitui o período de fixação daquilo que Piaget chama “inteligência operatório”. É nesta faixa etária que, frequente ou não a escola, a criança adquire aqueles conceitos que constituem a matéria prima do conhecimento. São os conceitos de espaço, tempo, relações, classes, combinações, etc.
Ao darmos condições à criança no sentido que ela divida o espaço e o tempo em partes não iguais, estaremos introduzindo-a no domínio da nova linguagem musical. A isocronia da rítmica tradicional, que está presente dentro dela biologicamente, imediatamente após se exteriorizará na medida em que sua inteligência se desenvolva a ponto de ser observada a possibilidade de divisão igual dos parâmetros espaço e tempo.
Outro fator importante numa possível metodologia, cremos ser a tomada de consciência das fontes sonoras.
Dever-se ia propor à criança a invenção de instrumentos novos. Não queremos dizer que noções teóricas de Acústica devessem ser transmitidas à criança, evidentemente. Mas queremos, sim, dizer que a criança poderá descobrir leis acústicas por indução. Colocasse o professor um elástico esticado em uma caixa de madeira pequena, colocasse ele outro elástico esticado em uma caixa maior; pedisse o professor ao grupo de criança que inventassem instrumentos com elásticos, ou com latas cobertas de um papel grosso, e certamente a aula seguinte seria rica de tambores graves e agudos de cordas vibrantes graves e agudas. O mesmo refere às colunas de ar vibrantes , ou seja, à perfuração de tubos de papelão ou pedaço de bambú. Grande coleção de flautas seria material didático a ser utilizado em aulas seguintes.
Outra atividade que consideramos de suma importância é o trabalho de transposição verbal e gráfica.
Trata-se da realização de audições de Música Contemporânea, em que os jovens sejam solicitados a transferir para um papel todas as impressões que lhes ocorrem durante as audições, seja sob forma de palavras, ou frases, ou grafismos, ou desenhos representativos.
O maior cuidado deverá ser tomado, entretanto, com relação à forma de ser feita a solicitação. Esta deveria ser feita de maneira a ficar claro que não se trata de um trabalho escolar, que não será corrigido ou julgado pelo professor, que será um ato gratuito por excelência. Este cuidado deve ser tomado, pois muito pouca coisa é necessária para que a criança se iniba. Para ser evitada a inibição dever-se-ia da ênfase ao nível em que se situa a experiência, ficando claro que cada um terá direito a expressar-se com toda a liberdade, e que todos estarão certos.
Este tipo de atividade é sistematicamente empregado pela educadora francesa Madeleine Gagnard e os resultados mostram a possibilidade de ser conseguida uma concentração mental do grupo, e de verificar-se um contato muito íntimo com a música.
Conta a professora Gagnard que, depois de realizar a experiência com uma turma de 4º ano primário, disse um aluno: “Isto me deixa dizer, escrever e desenhar tudo que penso e sinto. Nada disso posso fazer com os professores das outras matérias pois eles não me perguntam o que penso e somos obrigados a aceitar tudo que eles dizem”.
Outra experiência interessante e frutífera é a utilizada pelo compositor e educador canadense Murray Schaffer, e pelo inglês Brian Dennis. Trata-se da audição do silêncio. A turma é convidada a permanecer em silêncio durante cerca de 10 minutos. Cada criança deve ter o cuidado de não produzir intencionalmente nenhum ruído. E durante a “audição do silêncio”, a criança deve transmitir ao papel todo som que ela perceba. Estes sons podem ser divididos em quatro categorias.
– Ruídos não intencionais feitos pelo próprio aluno
– Sons provenientes de outras salas de aula
– Ruídos não intencionais produzidos por outros alunos
– E sons provenientes da rua
Essas experiências trazem à tona a percepção de: ruídos produzidos pelo lápis do aluno que escreve, os ruídos da sua própria respiração, os ruídos do papel arrastado na mesa de sua roupa, o “tic-tac” de um relógio de pulso, passos no corredor, marteladas longínquas, o trânsito de automóveis na rua, pássaros cantando, etc.
Estes mesmos pedagogos fazem despertar na criança o conceito moderno de ruído. Levam eles as crianças a perceber que ruído é todo som que atrapalha alguma conversa, ou uma música, ou uma coisa a ser percebida. Ao se tentar ouvir o silêncio, eram sempre constatados ruídos que povoavam aquele silêncio e que prejudicavam a sua percepção.
Esta prática contribui enormemente para com a capacidade da criança de perceber o mundo natural e o mundo cultural que a cercam.
Voltaremos a improvisação livre do grupo.
Depois da fase descoberta das possibilidades das fontes sonoras, realizada a improvisação livre, a criança passa a suportar ficar em silêncio enquanto outras tocam, pois eventualmente lhe interessará ouvir sons dos outros, que seu instrumento não produz, e o que passará a interessa-la será o efeito do conjunto, será a criação do grupo.
A utilização de um gravador será também de suma importância, para que o grupo ouça o resultado global, e sobre ele discuta. Aí, entrariam inevitavelmente em jogo a audição sintética e analítica. Pois na imagem daquela massa sonora global, a criança tentará se encontrar. Tentará apurar o ouvido para reconhecer, naquela total sonora para reconhecer, naqueles total sonoro, o som que foi produzido por ela.
Inevitáveis, durante audições de música, serão as associações extra-musicais. Ao brincar, a criança assimila um fato externo a um esquema de cognição de interesse momentâneo.
Um determinado interesse pode ser fortuitamente acionado pela presença de alguma coisa externa. Uma criança pequena, por exemplo, que vê e agarra um bloco sobre a mesa, e começa a brincar de carrinho até mesmo com efeito vocal onomatopaico de carro, demonstra este fenômeno.
Não seria de se estranhar, portanto, que durante a audição de uma peça de música Eletrônica, por exemplo, a criança ouvisse “florestas”, “árvores”, “praias”, “passarinhos”, etc.
A experiência do transporte gráfico pode ser feita também, não para audições de música, mas para adição de sons inusitados isolados. Caso o professor não tenha acesso aos sons eletrônicos, proporíamos a realização, através da manipulação da fita magnética, de sons concretos trabalhados de tal forma a ser emascarada toda causalidade.
Trata-se da chamada audição acusmática, desenvolvida pelos compositores dedicados à Música Eletroacústica.
Dá-se o nome de acusmáticos aos discípulos de Pitágoras, que atendendo a sugestão do mestre, ouviam seus ensinamentos pronunciados por trás de uma cortina. Acreditava Pitágoras que os conteúdos de seus ensinamentos seriam melhor assimilados, caso seus discípulos o ouvissem sem vê-lo, a ele e a seus gestos.
A audição acusmática consta da percepção sonora desprovida de toda causalidade. O som é ouvido de tal qual ele é, como som, sem que deduzamos, ou que procuremos deduzir, o corpo sonoro que o produziu. Percebido o som no que concerne à sua forma, à sua estrutura, à sua textura, podemos mais facilmente gozar do prazer estético da obra de arte pura, sem nos reportarmos a situações do mundo real, sem processos de associação extra-musical.
De acordo com este tipo de audição, podemos falar de uma tipologia sonora que ainda assim se reveste de associações, não com o mundo real, mas com o mundo abstrato da matemática.
Podemos falar dos sons do tipo ponto: do tipo ponto ressonante; do tipo granulado; do tipo linha; do tipo superfície.
É este vocabulário básico utilizado na linguagem musical de nossos dias.
A proposta nova seria fazer serem ouvidos sons como estes pelas crianças, que seriam convidadas a representar simbolicamente no papel tais fenômenos sonoros. Quem consulta uma partitura de Música Contemporânea, constata que na nova notação musical encontram-se em demasia símbolos tais como:
Para o desenvolvimento da percepção de outros parâmetros tais como: timbre, altura, registro, intensidade, etc. É bom exercício a audição de objetos sonoros que se distinguem apenas por um parâmetro, aquele que o professor deseja que seja percebido. Alguns exemplos:
– Sons que diferem entre si pelas suas formas dinâmicas
– Sons que diferem entre si pelos seus timbres
– Sons que diferem entre si pela intensidade
– Sons que diferem entre si pelo registro e altura
– Sons que diferem entre si pelas suas evoluções (glissandos)
Um fato constatado, de causas psicoacústicas, é que alguns objetos sonoros ou pares de objetos sonoros diferentes, são percebidos como tais, só depois de adquirir um “hábito”. Uma primeira audição de um som inusitado tem menos informação que a segunda ou a terceira audição do mesmo som.
Dando continuidade à experiência, de comum acordo, tentar-se-ia encontrar os símbolos mais eficazes e frequentes, dentre os inventados pelos alunos.
O grupo, assim, inventaria sua notação musical, codificando o vocabulário sonoro a ser utilizado em suas criações coletivas.
A escola não pode considerar a competência no ler e escrever como critério de medida de sucesso. Sem motivação suficiente, a criança aprende a ler e escrever porque quer agradar aos pais, porque quer competir com os colegas.
Se o grupo é capaz de construir peças musicais e é capaz de simbolizar o resultado numa notação musical por ele inventada; e se inversamente ele pode, de maneira coletiva, criar partituras, compor e executar com seus instrumentos ou objetos tais partituras, estará alcançando a meta almejada, pois toda atividade é parcela da inteligência humana, é educação, é socialização.
Falamos na utilização do gravador para registro das sessões de criatividade. Mas o gravador pode também ser utilizado como meio de transformação e criação de novos objetos sonoros.
Através da técnica do play-back, ou do multi-play, possível em qualquer gravador amador, o grupo poderá realizar experiências gravando a superposição de frases sonoras, aumentando ou diminuindo a velocidade do gravador, ou até mesmo manipulando a fita magnética, realizando trabalhos de montagem, tal como fazemos os compositores de Música Eletroacústica.
Para finalizar nossa exposição, faríamos aqui uma advertência. Refere-se ela ao cuidado que se deve dar à organização do grupo. Que este não seja super-organizado, tendo à frente um regente bizarro.
Nada mais destrutivo que a preocupação por uma prestação de contas pública de um trabalho realizado. Caso se imponha a necessidade de uma apresentação pública do grupo para uma platéia de pais ou administradores da escola, tenha-se sempre o cuidado de realizar a apresentação de maneira informal, tal como se faz na sala de aula.
Os ensaios repetidos de uma peça acabam revestindo artificialismo, e o mesmo diz respeito à regência muito planejada: tudo isto destrói a criação livre e espontânea, levando o grupo a uma tensão emocional que tolhe a liberdade de expressão.
Jorge Antunes, Compositor e maestro, é atualmente professor titular do Departamento de Música da Universidade de Brasília. Doutor em Estética Musical pela Universidade de Paris VIII –com a tese “Som novo, nova notação”-, precursor da música eletrônica no Brasil (1962) e criador da música cromofônica (que relaciona os sons às cores) , possui várias premiações em concursos internacionais de composição. É autor do livro Notação na música contemporânea (Brasília, Sistrum, 1989).
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