Deseleger deveria ser um direito do povo brasileiro

Jorge Antunes
Maestro, compositor, poeta, professor aposentado da UnB

 

Cinco milhões de cidadãos não podem, pacificamente, destituir um governo que foi eleito com 55 milhões de votos. Mas cem milhões de cidadãos deveriam poder derrubar, pacificamente, através do voto, um governo que foi eleito com mais de cinquenta milhões de votos.

A vontade majoritária e soberana do povo era respeitada há 2.150 anos. Em 133 a.C. o tribuno Otávio se opôs a um projeto de reforma agrária que daria terras para a plebe. Tibério pediu uma votação popular que destituiu Otávio. Se não adotarmos o mesmo mecanismo de participação popular, viveremos eternamente a frustração de eleitores traídos.

A Assembleia Constituinte de 1988 optou por regular apenas três mecanismos voltados à soberania popular: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. Existem mais dois instrumentos, praticados em alguns países, que até hoje os nossos legisladores têm rechaçado: o referendo revogatório e o veto popular.

O referendo revogatório permite ao eleitorado destituir um representante, por meio do voto direto, antes da data regular de fim de mandato. Esse mecanismo dá poder especial ao povo, de modo a que ele não tenha que continuar a ter como representante alguém que se revela corrupto, incompetente ou inoperante.

O mecanismo existe nos Estados Unidos da América, onde recebe o nome de recall. Existe também na Suécia, com o nome de abberufungsrecht. Os mandatos revogáveis existiram na Comuna de Paris. Na Suécia, o mecanismo foi implantado em 1846, no Cantão de Berna. Hoje existe na maioria dos estados norte-americanos, tendo sido adotado, pela primeira vez, em Los Angeles, em 1903. Nos Estados Unidos o mecanismo do recall é, na maioria dos estados, direito político do povo, não podendo, portanto, ser revisto pelos tribunais. O instrumento de participação popular foi usado na Califórnia em 2003, quando o governador Gray Davis teve o mandato revogado pelo voto popular. O ator Arnold Schwarzenegger foi eleito para substituí-lo.

O processo é simples: por meio de um abaixo-assinado, cidadãos solicitam a convocação de eleições revocatórias, questionando a manutenção do mandato de alguém. No Brasil o tema é muito pouco discutido e, assim, acaba por receber de estudiosos várias denominações diferentes: voto destituinte, plebiscito de confirmação de mandato, deseleição, voto revocatório, referendo revogatório, plebiscito por autoconvocação popular, destituição.

O referendo revogatório existe na Argentina, em âmbito provincial. Existe também na Colômbia, no Equador e no Peru, sempre aplicáveis a alcaides, prefeitos, deputados provinciais e governadores. Na Venezuela, o referendo revogatório já existia, em âmbito estadual, bem antes da Revolução Bolivariana. A Assembleia Constituinte, no governo de Hugo Chávez, apenas estendeu o instrumento para o âmbito nacional.

No Brasil foram raros os representantes que lutaram pela adoção do mecanismo. Na Constituinte de 1988 foi heroica a luta de Lysâneas Maciel, que defendeu a adoção do voto destituinte. A ideia foi fortemente rejeitada por seus pares. Uma exceção foi o apoio do deputado Domingos Leonelli. Em 2003, o exemplo bem-sucedido da Califórnia encorajou Jefferson Péres e Antônio Carlos Valladares a apresentarem, no Senado, projeto de emenda constitucional implantando o referendo revogatório. Mas a PEC acabou arquivada.

Com a eclosão do escândalo do mensalão, em 2005 um projeto semelhante foi apresentado por três deputados do PSOL: Babá, Luciana Genro e João Alfredo. O projeto, de conteúdo genérico, propunha a possibilidade da convocatória de um plebiscito, subscrita por 1% do eleitorado. Também fadada ao arquivamento, a iniciativa não vem demonstrando, em seu arrastado andamento, indícios de prosperar.

A democracia semidireta adotada em nosso país pode caminhar para a aproximação com a democracia pura. A democracia direta, nos moldes dos atenienses, não é possível em comunidades com milhões de pessoas. Mas o mecanismo do referendo revogatório pode atenuar a forma clássica do governo representativo.

O povo que, organizado, reconquistou o direito de eleger, tem o dever de lutar pelo direito de deseleger.