O ativismo político na música erudita

Jorge Antunes
Maestro, compositor, membro da Academia Brasileira de Música,
Pesquisador Sênior da UnB, Pesquisador A do CNPq

 

O rap surgiu na Jamaica na década de 1960, foi levado para os Estados Unidos dez anos depois e, em seguida, se espalhou pelo mundo. A burguesia ficou apavorada. As letras da nova manifestação artística falavam das dificuldades da vida dos habitantes de bairros pobres. O protesto social, a irreverência e a pregação da violência chegaram a amedrontar os donos do poder.Mas o poder de fogo do rap começou a cair quando, na década de 1990, o gênero despertou o interesse da indústria fonográfica. Hoje, completamente recuperado, tornou-se manifestação comercial e foi absorvido pelo sistema. Dessa forma, as falas ritmadas do MC já não assustam a ninguém. Tudo se tornou banal, comercial e bom para dançar. Não são apenas os jovens pobres que dançam. As dondocas e as patricinhas também entram na onda. O rap de protesto e o funk se fazem presentes até mesmo nas novelas da TV Globo.

Platão, em seu programa ético-musical da República, estudou as reações emotivas da massa popular. Jean-Jacques Rousseau, no século 18, detalhou alguns aspectos do fenômeno, lembrando que o intervalo de terça maior excita o sentimento de alegria, podendo chegar a imprimir ideias de furor. A terça menor, ao contrário, leva as massas à tristeza, despertando ternura e suavidade. Não é à toa que todos os hinos nacionais, além de usarem ritmo marcial, são escritos em modo maior. Observa-se, por outro lado, que quase todos os cantos religiosos e fúnebres são em modo menor. As reflexões de Platão e Rousseau se juntam a muitas outras que se seguiram, para demonstrarmos o poder de fogo que a música tem para influir nos destinos do homem e para formar mentalidades. Sou daqueles que acreditam que a vida imita a arte.

Em 1966, quando a ditadura militar reprimia violentamente as manifestações estudantis na Cinelândia, no Rio de Janeiro, escrevi uma obra para orquestra de cordas e fita magnética intitulada Dissolução. Como eu já estudava Física, todo mundo pensava que o título de minha peça tinha conotação extra-musical com algo de científico, de Química: a “dissolução” de alguma substância em laboratório. Mas, na verdade, a conotação era política e de contestação. Na obra tento descrever, com sons, a dissolução, feita pela polícia, de uma manifestação estudantil na rua. Na fita, além de sons eletrônicos, uso ruídos dramáticos de vidraças quebradas.

Naquela época não era fácil se fazer música engajada politicamente. Eu conseguia fazer, mas sempre de modo velado, disfarçado. A censura e a perseguição caiam sempre sobre qualquer obra de arte que insinuasse, em seu conteúdo ou em seu título, algo referente às questões sociais e políticas. Os autores de obras daquele tipo, então consideradas subversivas, passavam a ser perseguidos pelo donos do poder e até mesmo discriminados pelos próprios colegas artistas. Quem era amigo de um subversivo, corria risco de também ser considerado subversivo.

Hoje, os historiadores são sempre limitados quando analisam a censura praticada contra a produção cultural na época do regime militar. Eles se atêm ao estudo da repressão sofrida pela imprensa, pela literatura e pela música popular. Desconhecem, totalmente, a censura que foi imposta, pelo regime militar, à música erudita brasileira.

Em abril de 1964 minha canção Cabra da Peste, escrita para voz de barítono e piano, foi censurada pela direção da Rádio MEC do Rio de Janeiro. Para que fosse tocada no programa Jovens Compositores do Brasil, produzido por Dieter Lazarus, fui convidado a fazer nova gravação nos estúdios da rádio, desde que mudasse a letra da música.

Não faltaram, no passado, histórias de compositores brasileiros, na área da música erudita, que viveram uma fase de ativismo político através da música. Cláudio Santoro compôs, em 1953, sua Quinta Sinfonia, também conhecida como Sinfonia da Paz, com texto da poetisa comunista Antonieta Dias de Moraes. Gilberto Mendes, que à época estudava com Santoro, também escreveu canções engajadas politicamente usando poemas da mesma autora. Da mesma época data a obra Canto do Soldado Morto, de Eunice Katunda, com texto do poeta comunista Rossini Camargo Guarnieri. Por volta de 1973 o compositor paulista Willy Corrêa de Oliveira passou a compor unicamente obras musicais com fins de doutrinação política, militando junto às Comunidades Eclesiais de Base. Mas essa postura foi abandonada alguns anos depois.

Esses exemplos correspondem a fatos esporádicos e efêmeros, ocorridos circunstancialmente nas vidas daqueles compositores. Alguns deles, logo após aquelas experiências, voltaram a fazer arte pela arte. Outros chegaram até mesmo a virar casaca e condenar aquelas suas próprias posições do passado. Esse foi o caso, por exemplo, de Claudio Santoro. Em 1979, num debate realizado durante a Bienal de Música Contemporânea Brasileira, Santoro declarou que renegava todo aquele passado de engajamento político e que se arrependia de ter defendido ideias de esquerda e de tê-las embutido em algumas obras.

Assim, são raros, no Brasil, casos de compositores de música erudita que abraçaram e nunca mais abandonaram o ativismo político por meio da música, tal como aconteceu em outros países. Podemos citar, como exemplos dessas exceções: o alemão Hanns Eisler, o inglês Cornelius Cardew, o italiano Luigi Nono, o chileno Sergio Ortega, o italiano Luca Lombardi, o austríaco Wilhelm Zobl, o grego Thanos Mikroutsikos e o norte-americano Frederick Rzewski.

Intelectuais sempre tiveram, e continuam a ter, enorme responsabilidade com relação ao presente e ao futuro da humanidade. São eles os que, detentores de credibilidade, conseguem tribunas e espaços para fazer eco às suas convicções políticas. Por essa razão acredito ser obrigação do compositor não se encerrar em uma torre de marfim. O compositor que se tranca em torre de marfim é um compositor criminoso.

A música popular, mesmo aquela de protesto, sempre foi rapidamente adotada como mercadoria pela indústria fonográfica. O rap e o funk também seguiram a mesma trajetória. Mensagens políticas construídas para a venda, não convencem a ninguém.

A música erudita moderna e de vanguarda é a única vertente musical que resta, ainda hoje, não recuperada pelo sistema. Assim, ela passa a ser, ou a continuar a ser, o único suporte capaz de dar credibilidade a mensagens extra-artísticas de cunho social ou político.

 

Fonte: Revista Continente, edição 139, julho de 2012