O Avanço da Produção Independente
Domingo, 20 de fevereiro de 1983
Jorge Antunes
A verdade, enfim, é que esta ocupação especializada, a de artista criador, não permite, em geral, as condições de subsistência. Além disso não tenho notícias da existência de uma sociedade cujas transformações dos modos de produção e de troca tenham atingido o processo da produção e da distribuição do produto artístico, de modo a dar, ao artista criador, as condições necessárias ao livre exercício da criação artística.
O sistema capitalista, então, é implacável. Os meios de produção são, cada vez mais, afastados do artista, ficando com o capitalista a propriedade real daqueles meios de produção que a cada momento se vêem mais sofisticados com a introdução de novas máquinas-ferramentas. O circuito da comunicação artística, dessa forma, nunca pode ser representado pela reta que uniria transmissor a receptor, que uniria o artista criador ao público. Reta essa que, tenho a certeza, quando concretizada permite o surgimento do “feedback” e do diálogo. Mas a desejada reta não é realidade costumeira, dando sempre lugar ao antigo esquema triangular. O terceiro vértice do Triângulo da Comunicação é ocupado pelo voraz “produtor”. Dou o nome de “produtor” à máscara que vestem os habituais intermediários com quem, em primeiro lugar, o artista dialoga, e de quem, via de regra, o artista é vítima de ingerências, pressões, coações e sugestões que determinam modificações no projeto artístico original: diretores de teatros, regentes de orquestra, diretores e produtores de gravadoras, Secretários de Educação e Cultura, empresas e fundações estatais, seus diretores e assessores, editores, empresários, mecenas e outros detentores do Poder.
Não existe qualquer diferença, em essência, entre o empresário e o mecenas. Ambos utilizam o poder para obter lucros, ambos têm objetivos completamente diferentes daqueles próprios ao artista. O empresário, que em geral, tal como o crítico, é um artista frustado, pratica o ofício de “intermediário-produtor” tendo por objetivo o lucro financeiro. O mecenas também sempre foi o “intermediário-produtor” que visou seus lucros próprios. Só que, aqui, o lucro ora é financeiro, com descontos no seu imposto de renda, ora assume a forma de vantagens outras: a imposição de um prestígio frente a concorrentes ou a obtenção de favores especiais de outras elites detentoras do poder.
Ideal seria que cada criador dispuzesse de seu “pequeno poder”, de modo a não ser necessário ficar à mercê dos que manipulam a ele e ao público: mediadores, produtores, patrocinadores, programadores, atravessadores, etc.
São inúmeros os exemplos de músicos que hoje já dispõem de sua própria “máquina”, constituída de sua própria editora, sua própria etiqueta de gravação, seus próprios agenciadores. Todos esses casos se caracterizam por uma história de rebelião do explorado contra o explorador. No início da carreira o músico é farejado pela empresa ou pelo empresário espoliador. O faro aguçado pressente cheiro de dinheiro. Cláusulas leoninas são incluídas no contrato. O decorrer da história inclui sempre a rebelião, o litígio e a autogestão.
É necessário que cada artista profissional seja o proprietário de seus meios de produção, para que se efetive sua independência estética e ideológica. Para isso é preciso que o músico assuma seu papel de artesão, pois sabemos que o processo do autêntico trabalho musical é fundamentalmente artesanal, manufatureiro. Essa fórmula não deve, porém, ser vista como a preconização de uma elite de artistas transformados em pequenos capitalistas que inverteriam as polaridades do binômio explorador-explorado. É evidente que todos devem vender sua força de trabalho, mas de modo livre, independente, de maneira digna, não aviltante. Nesse tipo de “produção independente” o gerador, o criador, o autor da obra artística, passsa a ser “patrão”. Mas é um “patrão” que simplesmente dirige o processo da comunicação e da distribuição do seu produto artístico, sem explorar e sem ser explorado.
Não é dificil a transformação acima descrita se o músico consegue se desvencilhar de seu habitual e corrosivo individualismo. A união em pequenos mutirões e cooperativas desponta como a saída alternativa na luta contra as contradiçoes do sistema capitalista de produção.
Um velho dilema de há muito vem desnorteando jovens compositores: é preciso ser consagrado para ser editado, ou é preciso ser editado para ser consagrado? A problemática foi equacionada dessa forma no famoso diálogo entre Bernard Gavoty e Arthur Honegger. Alí, 1950, ser editado era a única maneira que se dispunha para que a obra fosse tocada, distribuída, “lida”. O outro meio de reprodução do original, a fotocópia, era caríssimo. Hoje a realidade é outra, com processos reprográficos a baixo custo. Se Gutenberg arruinou de vez a profissão de escriba, cinco séculos e meio depois a Xerox arruína a profissão de editor de música, só que, aí, de modo açambarcador e imperialista.