O Conjunto da Obra
Jorge Antunes
Maestro, compositor, membro da Academia Brasileira de Música, Pesquisador Sênior da UnB
Cristóvam, que vem abordando a questão exclusivamente sob o ponto de vista jurídico, e não político, acrescentou que tudo vai depender do conjunto da obra. Segundo o senador por Brasília, certamente será feita uma comparação entre o conjunto da obra de Dilma e o conjunto da obra de Temer.
Em 2007 o compositor Ennio Morricone recebeu um Oscar pelo conjunto da obra. Na Bienal de Veneza de 1961, Krajcberg foi premiado pelo conjunto da obra. Sei o que significa, em artes, a expressão “o conjunto da obra”. Eu mesmo já recebi homenagens por isso. Mas, e em política? A que se referem os políticos quando usam essa expressão tomada emprestada da comunidade artística?
Em 1964 Dilma, então com 17 aninhos, militava na Polop, resistindo ao golpe militar. Em 1964 Michel Temer, então com 24 aninhos, militava no staff do governador golpista Adhemar de Barros: Michel era oficial de gabinete do Secretário de Educação do governo Adhemar. Será que esses fatos referentes às “obras de juventude” são considerados pelos políticos quando falam do “conjunto da obra”?
Os recentes escândalos telefônicos têm demonstrado que o impeachment foi tramado nas sombras, como possível recurso para estancar a sangria que a Operação Lava Jato vem provocando vampirescamente em tribunos corruptos. “O desarranjo do governo Temer pode pesar para diversos senadores” – disse Cristovam. Olha só! Desarranjo é também expressão tomada emprestada de outro cenário. Sou do tempo em que a expressão ”desarranjo” era usada para se referir a um grande número de evacuações, acompanhadas de fezes de consistência disforme, pastosa ou líquida. Será que Cristóvam quis se referir a esse fenômeno hoje tão frequente na política? O fenômeno, inclusive, tem sido, ultimamente, jogado no ventilador por alguns delatores.
Cristóvam não está certo de que o alegado crime de responsabilidade da presidenta, se existiu, foi um crime capaz de justificar a cassação, de modo a se ignorar os 54 milhões de votos. Se vivêssemos sob um regime parlamentarista a pena máxima, no caso, seria um mero voto de desconfiança.
Cristóvam raciocina corretamente. Crime, se existiu, foi igual àquele praticado por muitos outros presidentes e governadores ao gerirem o orçamento. O princípio da proporcionalidade é considerado hoje um dos princípios mais importantes de todo o direito, e, em particular, do direito penal. A proporcionalidade da pena é fundamental no Estado Democrático de Direito. Ele impõe a proteção do indivíduo contra intervenções estatais desnecessárias ou excessivas.
Quem comete homicídio pode ser condenado a muitos anos de prisão. Mas essa pena não pode ser aplicada ao indivíduo que rouba um pneu de automóvel. Esse, certamente, será condenado a prestar serviços comunitários por algum tempo. O próprio Cristóvam lembrou, em suas declarações, que no regime parlamentarista o simples voto de desconfiança seria a pena a ser aplicada, caso ficasse comprovado o crime de que acusam Dilma.
A defesa de Dilma alega que os decretos de abertura de crédito sem autorização do Congresso, citados na denúncia de impeachment, não elevaram os gastos do governo, e apenas remanejaram despesas já autorizadas pelo legislativo na Lei de Orçamento. Mas o advogado José Eduardo Cardozo se esqueceu de outro argumento: o Orçamento Anual pode ser alterado pelo executivo, sem autorização prévia do legislativo, em casos especiais como calamidade e fome, entre outros, precisando apenas da anuência posterior. A suspensão do pagamento da bolsa família não determinaria uma calamidade, um surto de fome?
A anuência posterior do legislativo equivale à tradicional figura do ad referendum. Os regimentos de todas as Universidades estabelecem, em um de seus artigos, que “em situações de urgência ou de excepcionalidade, o dirigente pode tomar decisões de competência do colegiado que preside, ad referendum deste, submetendo sua decisão à apreciação do colegiado, em reunião subsequente”.
Tudo indica que no julgamento a ser realizado pelo Senado, dentro de alguns meses, a decisão final estará dependendo do fiel de uma balança: o voto de dois ou três senadores. Certamente as recentes ponderações de Cristóvam fazem com que o fiel da balança se resuma em alguns tribunos sensíveis, coincidentemente ligados à Cultura, tais como Romario e o próprio Cristóvam.