Os Caminhos da Produção Independente
Domingo, 20 de fevereiro de 1983
Jorge Antunes
Não é preciso editar para se consagrar, mas é preciso publicar, tornar a obra pública, para comunicar, para não deixar a mensagem artística, de cada um, oprimida e reprimida. Para isso é necessário fazer uso de todos os recursos técnicos disponíveis, desde os mais caseiros e primitivos até os mais complexos e avançados tecnologicamente: cópia manuscrita, cópia heliográfica, mimeógrafo a álcool, mimeógrafo, xerox, fita cassete, disco, etc. Mas é preciso, também, que o compositor assuma sua condição primordial de artesão e trovador andarilho, abandonando a torre de marfim em que foi enclausurado pelos preconceitos e condicionamentos impostos pelo sistema. Multiplicada a sua obra através de cópias, é necessário que o compositor parta para a venda de mão em mão, de bar em bar, pelo reembolso postal, de teatro em teatro, de hall em hall. Essa prática tem resultado no retorno imediato do capital investido e, por incrível que pareça, no lucro inesperado que passa a ser capital que vai financiar novo projeto.
Ressaltemos, porém, que esse “método alternativo” não deve ser estúpida e radicalmente considerado como excludente dos outros métodos.
A palavra “alternativa”, aqui, não deve se ater à acepção da Lógica, onde apenas uma das proposições é verdadeira. É válido fazer uso da arma do inimigo para se alcançar o objetivo final e, se possível e necessário, derrubar o inimigo, A Televisão, o Rádio e o Disco não são inimigos; são, sim, armas. Os Teatros, as Salas de Concerto e as Orquestras não são instituições extemporâneas inimigas; são, sim, armas, instrumentos. Inimigos são os poderosos anti-povo, anti-”livre expressão” e anti-contemporaneidade que manipulam e dirigem o uso desses instrumentos.
Enfim, não basta a adesão ou a conversão ao “alternativo”, ao “paralelo”, ao “independente”. É preciso que, simultaneamene, haja a organização de assaltos às trincheiras inimigas. É necessário que, além de se dedicar à produção independente, o compositor (e o artista em geral) se infiltre nos espaços oficiais e nos sistemas fortemente estabelecidos. O trabalho alternativo, paralelo e simultâneo, feito até mesmo de modo furtivo, imunizará inteiramente o “intruso” contra possíveis e eventuais contágios e atrações à coopção.
Ao seguirmos sem bitolas, sem barreiras e destemidamente com esse raciocínio, chegaremos a encontrar novas estatégicas que dêem continuidade à revolução, simplesmente iniciada, da produção independente. O “assalto às trincheiras inimigas” acima mencionado poderá ser feito por meios pacíficos, ou por meios não pacíficos. Os meios pacíficos são por demais conhecidos: aceitar fazer parte do júri de um programa de calouros e ali, no ar, fazer ser conhecida a obra reprimida; montar uma máquina caseira de divulgação de “releases”; alcançar as colunas especializadas da grande e da pequena imprensa; participar de concursos, vencê-los e combater a burguesa promoção de competições; cuspir no prato em que se come sem o menor escrúpulo desde que verificado ser o dono do prato um inimigo da massa oprimida, mas com a cautela e a sutileza que permitam uma futura nova comida; aproveitar a tribuna que, de mão beijada, de vez em quando a grande imprensa propicía ao artista entrevistando-o; enviar projetos de apresentações da obra aos organismos oficiais, com um bombardeio simultâneo, da massa intelectual e dos órgãos de classe, que funcione como meio de pressão; “tomar” os órgãos de classe; organizar “frentes culturais”; organizar “lobbies” de artistas; etc.
Desconhecidos são, até agora, os meios a que chamo “não pacíficos”. Embora eu já possua uma boa coleção de projetos desse tipo, nunca os coloquei em prática por aguardar, ainda, as necessárias adesões. Dentre esses projetos eu destaco o do CMC (Comando da Música Contemporânea) que, consultando minha pasta de projetos, verifico datar de 25 de janeiro de 1980:
Comando da Música Contemporânea (CMC) – “pequeno grupo de militantes musicais treinados para operações rápidas em território inimigo” – (Entenda-se como “território inimigo” qualquer local, palco, teatro, hall de teatro, praça pública, etc, onde pessoas se reunam para fazer outra coisa que não seja Música Contemporânea).
O Militante Musical – usará lenço vermelho cobrindo nariz e boca, como se desejasse não ser identificado; estará “armado até os dentes” com armas de brinquedo que tenham forte aparência de armas de verdade.
O Comandante-Regente – usará roupa especial tipo “fraque-romântico”, à qual serão sobrepostas armas e apetrechos que lembrem sua condição quixotesca: espada na cinta e longo bastão tipo “lança”. Ideal é que o “Comandante” atue sempre acompanhado e assessorado de um secretário gordo, de chapéu e faixa vermelha amarrada na cintura.
Operações – sequestros; interrupção de concertos durante plena execução de clássicos, sequestrando-se o regente e/ou o solista; invasão do teatro. Após rápido comício do “Comandante”, em que ele esclarece o público acerca dos propósitos da operação, o comando distribui nas estantes o material da “Música Relâmpago”.
Música-Relâmpago – terá as características de um comício-relâmpago, de curta duração, que rapidamente se dissolve; constará de obra com duração entre 1 segundo e 1 minuto e meio, podendo chegar, no máximo, a 2 minutos; será música de fácil execução, tendo em vista a necessidade de performance sem qualquer ensaio; terá caráter agressivo; poderá incluir elementos extra-musicais de conotação política, econômica ou social, na intenção de fazer passar mensagem de proposição de mudanças no status-quo da comunidade local (faixas, cartazes, textos lidos através de megafone, declamadores, coro, etc.); utilização de laivos neo-românticos, com curtas intervenções melódicas.