Praia do Flamengo 132

No final de 1966 conheci o Reginaldo de Carvalho. Nosso primeiro encontro foi no Festival de Música Contemporânea promovido pelo Paschoal Carlos Magno na Aldeia de Arcozelo. Reginaldo apresentava, no Festival, algumas de suas obras eletroacústicas recém-realizadas em Paris. E eu apresentava minha Canção de Paz, para Voz, Piano e fita. Reginaldo acabava de ser indicado para dirigir o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. Começaria sua gestão revolucionando tudo: o Conservatório iria ser transformado em Instituto Villa-Lobos, com um Centro de Pesquisas do Som e da Imagem. Depois que Reginaldo assistiu ao meu concerto, na Aldeia, conversamos bastante sobre problemas técnicos e estéticos da Nova Música. Convidou-me para ministrar um Curso de Músicas Eletroacústicas no novo Instituto. Assim, no final de 1966 transferi meu laboratório para uma saleta do IVL, e em março de 1967 comecei a ministrar o Curso de introdução à Música Eletrônica, Concreta e Magnetofônica.

O Curso era gratuito, aberto a músicos e leigos. Ministrei o curso duas vezes, durante 1967 e 1968. Das 4 turmas, tendo passado por minhas mãos um total de cerca de cem alunos. Dentre esses alunos, eu destacaria Gerson Valle (hoje, chefe de gabinete da FUNARTE), Dulce Tupy (hoje, crítica musical da revista Isto É e de outros periódicos), e vários poetas do movimento “Poema de Processo” (Álvaro As, Newton Sá, e outros). Os compositores Guilherme Vaz e J. Lins também assistiram a grande parte do curso! Com o convite do Reginaldo, transferi todo o meu laboratório amador de música eletrônica, para o IVL. Instalei o Centro de Pesquisas Cromo-Musicais numa saleta no alto de uma sala dos fundos. O acesso a esta saleta era feito por uma escada íngreme. O IVL possuía um Revox modelo antigo, que veio enriquecer meu modesto laboratório. Mas eu só podia trabalhar no laboratório quando não havia aula na sala de baixo, pois não havia isolamento acústico. O choque de gerações aconteceu. Antigos professores do Conservatório tiveram que começar a conviver com as novas gerações de professores trazidas pelo Reginaldo. Iberê Gomes Grosso foi o mais acessível. José Vieira Brandão, razoavelmente, também o foi. Maria Silvia Pinto olhou-me com a cara feia durante um ano.

Em 1968, quando ela veio a conhecer minhas antigas canções para Soprano e Piano, as incluiu em seu repertório e nos tornamos ótimos amigos. Mas a amizade não mudou o seu conceito sobre “aqueles barulhos horríveis que eu fazia lá em cima com os gravadores”. Várias das minhas primeiras obras eletroacústicas, eu as realizei ali na “antiga UNE” (Praia do Flamengo 132). Eu destacaria: Três Estudos Cromofônicos, Missa Populorum Progressio, Canto do Pedreiro, Movimento Browniano, Três Eventos da Luz Branca e Insubstituível 2ª, para Violoncelo e Fita. Esta última eu a escrevi especialmente para o Iberê, a pedido dele. Iberê ficou fascinado com o novo mundo sonoro que ele ouvia saindo da minha saleta, e um dia subiu as escadas para visitar-me, pedir-me uma peça para cello e sons eletrônicos. Em 1968 foi criado o Grupo Música Nova do Rio de Janeiro. Deste Grupo faziam parte: eu, Edino Krieger, Esther Scliar, Reginaldo de Carvalho, Guerra Peixe, Ayrton Barbosa e Marlos Nobre. Em uma de nossa reuniões, realizada no IVL, mostrei aos demais integrantes do grupo a peça para fita que eu acabara de realizar: Movimento Browniano. Esther Silar ficou admirada com a sutileza dos ritmos e das variantes tímbricas dos sons de tipo “ponto-de ressonância”. Reginaldo gostou. Edino achou “interessante”. Marlos foi categórico: “-Isto não é música!”. Em novembro de 1966, tão logo instalei meu laboratório do IVL, procurou-me o poeta Emanuel de Moraes. Encomendou-me ele a trilha sonora, eletrônica, para sua peça teatral João da Silva. Foi a primeira fita magnética que realizei no IVL. Foi também a primeira frustração minha como compositor, e em consequência do movimento político nascido com o golpe militar de 1964: a peça de Emanuel de Moraes foi proibida pela Censura Federal. A notícia foi recebida após ter eu terminado a trilha sonora. Em julho de 1968 a experiência com a Censura iria se repetir. Depois de um trabalho cansativo de quatro meses, na minha “saleta-laboratório” no IVL, terminei a fita magnética para a peça Xadrez Especial de Alfredo Gerhartd. Terminada da composição, ensaiada a peça, marcada a estréia, veio a triste notícia: censurada integralmente.

Durante as manifestações estudantis de 1968, no Rio, foi assassinado um estudante pela polícia. Creio que isto foi em outubro. Na época eu estava trabalhando dia e noite no IVL em minha Missa Populorum Progressio, para coro misto e fita magnética; uma longa obra, com cerca de 40 minutos de duração. A Missa seria estrada em meu casamento, marcada para março do ano seguinte. Num sábado à tarde recebemos a notícia por telefone: o enterro do estudante passaria pela Praia do Flamengo, e corria o boato de que os estudantes invadiriam o prédio. O vigia fugiu pelos fundos, pulando o muro. Eu e o aluno ficamos discutindo o que fazer com o equipamento eletrônico. Resolvemos fazer uma grande faixa de pano em que pintamos o letreiro: “Os estudantes de música e de teatro deste prédio também estão de luto”. A morte do estudante Edson havia me chocado bastante. A faixa que pintei não só externava indiretamente meu pesar e revolta (embora fosse professor no IVL, eu ainda era aluno na Escola de Música, ainda era estudante universitário), mas também serviria como meio de lembrar aos integrantes do enterro-passeata que o velho prédio da UNE agora era útil de outra forma: abrigando novas escolas de arte. Lá pelas 4:30 passou a massa em frente ao prédio. Ouvi os brados: ”-A UNE é nossa” -A UNE é nossa”…Aos gritos, um grupo exaltado começou a balançar ruidosamente os grandes portões da entrada. Lá dentro nos apavoramos. Peguei o velho Revox, a coisa mais valiosa que havia no laboratório, e o levamos conosco, pulando o muro de trás. Horas depois soubemos que a massa de estudantes tinha seguido em frente, sem depredações. Acho que a faixa deu resultado. Quando cheguei ao IVL na segunda-feira de Revox no ombro, estava montado o maior quibrocó por causa da faixa “subversiva” que estava lá no alto do prédio. Expliquei tudo ao Reginaldo, e ele acalmou os ânimos dos “caçadores de cabeça” que por ali andavam. Em dezembro de 1968 foi decretado o AI-5. Os meios intelectuais de todo o Brasil, e o Rio de Janeiro em particular, começaram a viver um clima de desespero e desesperança. Velhos amigos, colegas e professores já tinham condições de vida normal no país. Um dia o Reginaldo me chamou em sua sala e disse que tinha recebido uma carta, segundo ele “remetente secreto”, dizendo que quatro professores do IVL não poderiam continuar ali trabalhando.

O Reginaldo cobriu a tal carta com uma outra folha de papel, e levantou a ponta desta para que eu pudesse ler os nomes dos quatro professores. Lá estavam os nomes do Gouveia, da Esther Seliar, do Guerra Peixe e o meu. Na semana seguinte recebi a carta do Maestro Alberto Ginasfera, de Buenos Aires, comunicando ter eu ganho a bolsa-de-estudos, por dois anos, para o Instituto Torcuato Di Tella. Em 23 de março de 1969 case-me com Mariuga ao som da Missa Populorum Progressio, o Morelenbaum regendo o coro de alunos e professores da Escola de Música, a Vania Dantas Leite difundindo a fita de sons eletrônicos, e no dia seguinte viajei para Buenos Aires. Só voltei ao Brasil cinco anos depois. Antes de partir , apresentei a Marlene Migliari Fernandes ao Reginaldo de Carvalho, dizendo-lhe que ela era a pessoa indicada para fazer crescer a pequena semente que eu havia plantado. Marlene acabava de chegar de Buenos Aires, após a bolsa de estudos no Instituto Torcuato Di Tella. Trocávamos, eu e ela de lugar. Jorge Antunes é compositor, com obras premiadas na Itália, Estados Unidos, França, Chile, Israel e Brasil. É Professor de Composição Acústica Musical da Universidade de Brasília, onde mantém um Laboratório de Música Eletrônica e orienta um Grupo de Experimentação Musical. Foi professor do Instituto Villa-Lobos de 1967 a 1969.