Deseleger deveria ser um direito do povo brasileiro
Jorge Antunes
Maestro, compositor, poeta, professor aposentado da UnB
A vontade majoritária e soberana do povo era respeitada há 2.150 anos. Em 133 a.C. o tribuno Otávio se opôs a um projeto de reforma agrária que daria terras para a plebe. Tibério pediu uma votação popular que destituiu Otávio. Se não adotarmos o mesmo mecanismo de participação popular, viveremos eternamente a frustração de eleitores traídos.
A Assembleia Constituinte de 1988 optou por regular apenas três mecanismos voltados à soberania popular: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. Existem mais dois instrumentos, praticados em alguns países, que até hoje os nossos legisladores têm rechaçado: o referendo revogatório e o veto popular.
O referendo revogatório permite ao eleitorado destituir um representante, por meio do voto direto, antes da data regular de fim de mandato. Esse mecanismo dá poder especial ao povo, de modo a que ele não tenha que continuar a ter como representante alguém que se revela corrupto, incompetente ou inoperante.
O mecanismo existe nos Estados Unidos da América, onde recebe o nome de recall. Existe também na Suécia, com o nome de abberufungsrecht. Os mandatos revogáveis existiram na Comuna de Paris. Na Suécia, o mecanismo foi implantado em 1846, no Cantão de Berna. Hoje existe na maioria dos estados norte-americanos, tendo sido adotado, pela primeira vez, em Los Angeles, em 1903. Nos Estados Unidos o mecanismo do recall é, na maioria dos estados, direito político do povo, não podendo, portanto, ser revisto pelos tribunais. O instrumento de participação popular foi usado na Califórnia em 2003, quando o governador Gray Davis teve o mandato revogado pelo voto popular. O ator Arnold Schwarzenegger foi eleito para substituí-lo.
O processo é simples: por meio de um abaixo-assinado, cidadãos solicitam a convocação de eleições revocatórias, questionando a manutenção do mandato de alguém. No Brasil o tema é muito pouco discutido e, assim, acaba por receber de estudiosos várias denominações diferentes: voto destituinte, plebiscito de confirmação de mandato, deseleição, voto revocatório, referendo revogatório, plebiscito por autoconvocação popular, destituição.
O referendo revogatório existe na Argentina, em âmbito provincial. Existe também na Colômbia, no Equador e no Peru, sempre aplicáveis a alcaides, prefeitos, deputados provinciais e governadores. Na Venezuela, o referendo revogatório já existia, em âmbito estadual, bem antes da Revolução Bolivariana. A Assembleia Constituinte, no governo de Hugo Chávez, apenas estendeu o instrumento para o âmbito nacional.
No Brasil foram raros os representantes que lutaram pela adoção do mecanismo. Na Constituinte de 1988 foi heroica a luta de Lysâneas Maciel, que defendeu a adoção do voto destituinte. A ideia foi fortemente rejeitada por seus pares. Uma exceção foi o apoio do deputado Domingos Leonelli. Em 2003, o exemplo bem-sucedido da Califórnia encorajou Jefferson Péres e Antônio Carlos Valladares a apresentarem, no Senado, projeto de emenda constitucional implantando o referendo revogatório. Mas a PEC acabou arquivada.
Com a eclosão do escândalo do mensalão, em 2005 um projeto semelhante foi apresentado por três deputados do PSOL: Babá, Luciana Genro e João Alfredo. O projeto, de conteúdo genérico, propunha a possibilidade da convocatória de um plebiscito, subscrita por 1% do eleitorado. Também fadada ao arquivamento, a iniciativa não vem demonstrando, em seu arrastado andamento, indícios de prosperar.
A democracia semidireta adotada em nosso país pode caminhar para a aproximação com a democracia pura. A democracia direta, nos moldes dos atenienses, não é possível em comunidades com milhões de pessoas. Mas o mecanismo do referendo revogatório pode atenuar a forma clássica do governo representativo.
O povo que, organizado, reconquistou o direito de eleger, tem o dever de lutar pelo direito de deseleger.