Anadiplose e Epizeuxe

duas figuras de linguagem na música eletroacústica que, no âmbito da retórica e da eloqüência, apontam para significações dos tipos “persuasão” e “sedução”

Prof. Dr. Jorge Antunes
Universidade de Brasília – antunes@unb.br

 

Resumo: Este trabalho dá seguimento às pesquisas do autor no domínio da linguagem da música eletroacústica. A base do trabalho está na constatação prévia de que “o ato de ouvir música está sempre acompanhado de grafismos inconscientes que a mente e o intelecto praticam em espaços imaginários”. Depois de uma primeira etapa da pesquisa em que foram estabelecidas as bases sonológicas de semantemas do tipo emoção forte e de novas unidades semânticas de conotação gráfico-espacial-temporal baseadas em recursos de linguagem voltados à comunicação, o autor voltou-se à busca do fenômeno da persuasão do discurso, ou seja, ao estudo da eloqüência na música eletroacústica. Concluiu-se da pertinência do estudo através da identificação, no contexto musical eletroacústico, de duas novas figuras de linguagem próprias da Retórica: a Anadiplose e a Epizeuxe.

Palavras-chave: retórica e persuasão; semântica musical; música eletroacústica.

 

  1. Três gêneros da Retórica

       Aristóteles distinguiu três grandes gêneros na Retórica (Aristóteles, 1997). O primeiro gênero é o “epidítico”, que usa um estilo divertido e agradável e em que o auditório desempenha um papel preciso: o público comanda o elogio ou a censura. O segundo gênero é o “judiciário”, em que se determina se uma ação é justa ou não. O terceiro é o gênero “deliberativo”, em que se deve decidir acerca de uma ação, em função de uma utilidade ou de uma nocividade. Esses três gêneros têm um componente de “ethos”, um de “pathos” e um outro de “logos”. Enfim, a audiência julga se o discurso é belo (epidítico), justo (judiciário) ou útil (deliberativo) (Gardes-Tamine, 1996).

       O componente “ethos” está presente no comunicador, que no âmbito da fala é o orador e no domínio da música é o dipolo compositor-intérprete. O componente “pathos”, cuja origem etimológica se refere às reações da alma, se localiza no domínio das paixões. O componente “logos” (jogo) está presente também nos três gêneros: nas retóricas epidítica, judiciária e deliberativa sempre se joga com o que “seria possível”, com o que “é possível” e com o que “será possível” (Cooper, 1967).

 

  1. Comunicação, epidítico e distância

       Na vida cotidiana, em geral, quando alguém pergunta: “–Como vai?” e o outro responde: “–Tudo bem. Como vai?”, na verdade um não está realmente interessado em saber como vai o outro. Esses cumprimentos muitas vezes antecedem diálogo ácido, que tratará de assuntos delicados. As saudações iniciais sempre trazem a polidez que abranda ou minimiza a agressividade potencial e o aspecto agressivo que podem desabrochar no diálogo subseqüente.

       De acordo com Esther Godoy esses e outros aspectos da comunicação humana têm por objetivo diminuir a “distância” entre os indivíduos e, para tanto, deve ocorrer “uma negociação para que se concretize a diminuição dessa distância. O epidítico, que visa anular a distância, preenche perfeitamente essa função” (Godoy, 1978).

 

  1. Persuasão e sedução

       Diferentes figuras de linguagem têm sido identificadas na música eletroacústica. Aqui pretendemos ressaltar alguns tipos de fenômeno provocados, durante a comunicação musical, pelas sintaxes que usam semantemas (Antunes, 2001a, 2001b): o “convencimento”, a “comoção” e a “persuasão” (Antunes, 2004).

       Aqui queremos introduzir outra palavra que bem define a intenção do compositor no processo de “conquistar” o público: a “sedução”. O conceito de “sedução” vem sendo aplicado apenas na publicidade, na propaganda, nas relações amorosas e na política.

       Não é apenas nesses quatro processos de comunicação que a “sedução” se faz presente. Também na música podemos falar de uma “retórica da sedução”. No fenômeno da comunicação musical também encontramos o discurso indireto, figurado, que não diz de modo literal aquilo que motiva ou inspira o comunicador ou o autor, mas que, embora não dito, é involucrado em sintaxes pelo compositor, com táticas e estratégias revelando a intenção de que algo velado seja percebido e assimilado pelo público.

       O compositor de música eletroacústica além de pretender “convencer” e “comover”, não mais apenas praticando o puro deleite sonoro, trata muitas vezes de tentar “seduzir” o ouvinte. A pesquisa que venho desenvolvendo volta-se à busca e identificação de elementos de linguagem que denotam evidências de uma “eloqüência eletroacústica”.

 

  1. Elocuções figuradas

       No capítulo III do Livro IX, Quintiliano estuda a “Elocução Figurada”, detendo-se nas “Figuras das Palavras”. É no Artigo I deste capítulo que encontramos as principais figuras: anáfora, epístrofe, poliptóton, anadiplose, epizeuxe, reduplicação, diácope, simploce, epanalepse, epânodo, sinonímia, exergásia, polissíndeto e gradação (Quintiliano, 1944).

       Nesta etapa da pesquisa me concentrei nas figuras que, com alguma freqüência, encontramos no repertório da música eletroacústica: a anadiplose e a epizeuxe. Essas figuras exprimem e despertam certa compaixão, exortando valores semântico-musicais que cativam ou seduzem o ouvinte, através do componente “pathos” mas também com forte presença do “epidítico”.

 

  1. Anadiplose

       Anadiplose é a figura retórica que consiste em repetir no princípio de um verso, ou de uma frase, uma palavra que estava no final do verso anterior ou da frase anterior. Vejamos um exemplo de anadiplose, no poema do espanhol José de Espronceda intitulado “A la muerte de Torridos y sus compañeros”:

Españoles, llorad; mas vuestro llanto
lágrimas de dolor y sangre sean,
sangre que ahogue a siervos y opresores,
(José de Espronceda)

Em Shakespeare encontramos interessantes exemplos de anadiplose. Eis um deles:

The love of wicked men converts to fear,
That fear to hate, and hate turns one or both
To worthy danger and deserved death.
(Shakespeare, Richard II 5.1.66-68)

Encontramos a anadiplose em alguns poemas de autores brasileiros:

Contou muitas histórias.
Histórias de lembranças.
(Álvaro Moreira, Havia uma Oliveira no Jardim, p.104)

E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.
(Vicente de Carvalho, Poemas e Canções, p.263)

O dia surge todo de bruma,
todo de bruma, todo de neve.
(Alphonsus de Guimaraens, Obras Completas, p.117)

       Na música eletroacústica, em que a eloqüência na transmissão de uma idéia musical pudesse se manifestar, o uso da anadiplose deverá se inserir na construção em que um mesmo objeto sonoro, ou um mesmo semantema, se encontre no final de uma frase e, com repetição, no início da frase seguinte.

       A seguir relacionamos alguns exemplos de anadiplose encontrados no repertório internacional da música eletroacústica:

       Aquamarina (1998), de Elzbieta Sikora
       Localização: Segmento entre os momentos 2′ 13″ e 2′ 27″. Duração: 14 seg.
       Comentário: Duas pequenas frases se sucedem, as duas contendo apenas dois elementos: uma nota grossa longa de altura instável em torno do lá bemol 4 e um breve semantema com seis articulações graves em torno do lá 2. A primeira frase termina com o semantema e a segunda frase começa com o mesmo semantema discretamente fracionado. A seqüência ganha, assim, caráter simétrico.

       Les Fleurs, ces bouquets d’agonie (1998), de Frédéric Kahn
       Localização: Segmento entre os momentos 5′ 00″ e 5′ 09″. Duração: 9 seg.
       Comentário: Duas frases se sucedem com predomínio de som granulado contínuo, com caráter de crepitação. A primeira frase termina com breve objeto sonoro agudo com forma dinâmica crescente, como um som “ao contrário”. Breve interstício antecede novo aparecimento do mesmo objeto sonoro agudo (o som “ao contrário) que dá início à nova frase. A primeira frase tem 3 segundos e a segunda tem 6 segundos.

       Saxl (1999), de Sven-Igo Koch
       Localização: Segmento entre os momentos 3′ 28″ e 3′ 53″. Duração: 25 seg.
       Comentário: Duas frases: a primeira com 17″ e a segunda com 8″. Na primeira um som granulado cíclico gira em torno do mi 3 e, ao mesmo tempo, sobre ele desfila uma quase-melodia que passa pelas notas fá 3, lá 3 e ré 3. Para concluir a frase explode, abruptamente, um novo objeto sonoro: uma espécie de baque (Antunes, 1999) com aumento radical da intensidade do mi 3. Esse final de frase se desvanece rumo ao silêncio. Em seguida entra nova frase, iniciada com duas intervenções sucessivas do objeto sonoro brusco com que se concluiu a primeira frase. Essa repetição do objeto no início da nova frase enfatiza a eloqüência da anadiplose que se origina da sucessão das duas frases.

 

  1. Epizeuxe

       A epizeuxe, também conhecida com os nomes de reduplicação e geminação, é uma figura de iteração: consiste em repetir uma palavra ou um grupo de palavras no começo, no interior ou no fim de um enunciado, sem intervalo.

Um exemplo em Garcilaso:

Amor, amor, un hábito vestí
(Garcilaso de la Vega [1503-1536] )

Eis um exemplo na literatura peruana:

en el ala, no en el ave
y en ti sólo, en ti sólo, en ti sólo
(César Vallejo [1892 – 1938])

Um exemplo na literatura do século XV:

Rey don Sancho, rey don Sancho,
no digas que no te aviso
(Cantar de Gesta, Romance anônimo do séc. XV)

Alguns exemplos na literatura brasileira:

e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo …
(Machado de Assis. Histórias sem Data, p.6)

Nize? Nize? Onde estás? aonde? aonde?
(Cláudio Manuel da Costa, Obras Poéticas I, p.109)

Já, já me vai, Marília, branquejando
loiro cabelo, que circula a testa
(Tomás Antônio Gonzaga. Marília de Dirceu, p.85)

       A seguir relacionamos alguns exemplos de epizeuxe que encontramos no repertório internacional da música eletroacústica. Nestes exemplos eletroacústicos, as repetições de semantemas e objetos sonoros despertam aquele mesmo significado de exortação que a figura provoca na poesia:

       Nebula Prospekt (1984), de Patrick Kosk
       Localização: Segmento entre os momentos 4′ 15″ e 4′ 28″. Duração: 13 seg.
       Comentário: Uma frase se desenvolve com um som grave que se repete, em breves glissandos descendente, formando uma discreta cortina de fundo. Pequenos ruídos agudos fazem interferências esporádicas. Na última seção da frase novo objeto se superpõe, de modo iterativo, ao conjunto: trata-se de célula de duas notas, lá 3 e fá 3, que se repete continuamente durante os 5 segundos finais da frase. Sem intervalos a figura de iteração se faz presente.

       Primpilipansa (2004), de Elsa Justel
       Localização: Segmento entre os momentos 1′ 09″ e 1′ 33″. Duração: 24 seg.
       Comentário: Longa frase tem início com a introdução de um som grave de ataque brusco e extinção gradual. Superposta à extinção dessa base, pequena nuvem de sons pontuais agudos aparecem, dando lugar a som iterativo e granulado que vai se manter durante toda a frase. Sobre este som granulado que ocupará 80% da frase, é lançada idéia nova: um objeto sonoro curto, de trajetória ascendente, de gesto expressivo tal como um “rabisco” nervoso. Esse “rabisco ascendente” vai se repetir 8 vezes, esporádica e sucessivamente, evocando claramente a figura da epizeuxe durante os 12 segundos finais.

       Sampling (2004), de Edson Zampronha
       Localização: Segmento entre os momentos 0′ 00″ e 0′ 37″. Duração: 37 seg.
       Comentário: Uma longa frase tem início com o pedal de uma nota grossa granulada de altura média em torno de um sol 3 um quarto de tom acima. Após 11 segundos um outro objeto sonoro, também granulado, vai, de modo interativo, insistir com sua presença, evocando a idéia de exortação. Esse objeto é mais grave, com altura média próxima à do mi 2, e volta à cena mais 2 vezes: a segunda vez aos 21 segundos e a terceira vez aos 28 segundos.

 

  1. Conclusões

       A identificação das duas figuras de linguagem anadiplose e epizeuxe em obras eletroacústicas de diversos momentos da segunda metade do século XX, no início do século XXI e em diferentes compositores de diferentes gerações, nos desvenda um campo de pesquisa que pode enriquecer o conhecimento do fenômeno da comunicação estética, na medida em que se evidenciam elementos de uma arte da retórica musical. Os indícios de uma possível “eloqüência” na música eletroacústica, que demonstra a intenção do compositor em “seduzir” a escuta por meio de gestos poéticos, acende luzes que podem iluminar as estruturas da nova música como algo mais do que uma simples meta-linguagem.

 

Referências Bibliográficas

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––––––. (2001a). O Semantema. In Opus nº 7. In Revista eletrônica da Anppom, 2001. Disponível em <https://www.musica.ufmg.br/anppom/opus/opus7/antmain.htm> Acessado em 28/05/2006.
––––––. (2001b). Clamores e Argumentos: identificação de semantemas musicais na música eletroacústica, com base em significações do tipo “persuasão”. In Anais do XI Encontro Nacional da Anppom. XI Encontro Nacional da ANPPOM, Belo Horizonte, 2001, 253-260.
––––––. (2004). Anáfora, Epístrofe e Poliptóton: identificação de figuras de linguagem na música eletroacústica, no âmbito da retórica e da eloqüência, com base em significações do tipo “persuasão” In Anais do XIV Encontro Nacional da Anppom. XIV Encontro Nacional da Anppom, Porto Alegre, 2004.

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Quintiliano, M. Fábio (1944). Instituições Oratórias. São Paulo: Edições Cultura, 1944. Tradução de

Jerônimo Soares Barbosa. 2 Tomos.