República, Hino e Copa do Mundo

Jorge Antunes
maestro, compositor,
professor titular da Universidade de Brasília, membro da Academia Brasileira de Música

 

Brasil e Portugal. A partida prometia muitas emoções naquele 26 de junho de 2010. Eles, cantando com tanta emoção, nem imaginavam que tudo terminaria zero a zero: nenhum gol. Certamente alguns pensavam que, sem Kaká, tudo seria mais fácil.

O número 7, Cristiano Ronaldo, abria a boca com muita expressão no refrão: Contra os canhões, marchar, marchar! Tenho quase certeza de que nem Cristiano, nem seus companheiros, sabiam que a pouco mais de cem anos a letra era diferente: Contra os Bretões, marchar, marchar! Talvez nem se lembrassem de que outro Cristiano havia escrito aquela bela e expressiva melodia.

O compositor Alfredo Cristiano Kiel (1850-1907), compôs A Portuguesa em 1890. O hino foi escrito em resposta ao Ultimatum britânico, sobre as pretensões portuguesas de ocupar os territórios entre Angola e Moçambique. Cristiano Kiel, o compositor, morreu em 1907 sem imaginar que três anos depois a República seria proclamada e que seu hino viria a ser apropriado pelos republicanos para tornar-se o hino nacional.

O autor da letra, Henrique Lopes de Mendonça (1856-1931), determinou que se marchasse “contra os bretões” ao som da marcha de Kiel. O hino patriótico, a partir de 1911, colocava canhões no lugar de bretões, transformando-se na grande canção republicana.

Com a Proclamação da República, a 5 de outubro de 1910, A Portuguesa não se transformou, de imediato, no hino nacional. Somente em 19 junho de 1911 veio a acontecer a oficialização do símbolo nacional, por decreto da Assembleia Nacional Constituinte.

A escolha era oportuna e natural, pois que aquele canto patriótico já vinha sendo cantado pelo povo e pelos políticos republicanos desde a revolta de 31 de janeiro de 1891, quando um movimento revolucionário eclodiu no Porto para implantação da República em Portugal.

A peça foi escrita originalmente para canto e piano, seguindo o estilo dos Lieder germânicos, com algumas citações e lembranças da Marselhesa e do fado. A origem do fado é polêmica. Alguns afirmam proceder ele dos cânticos dos mouros que permaneceram no bairro da Mouraria. Outra teoria indica que a origem do fado desponta da popularidade, nos séculos XVIII e XIX, da Modinha e da sua síntese popular com outros géneros afins, como o Lundu. Mas o que importa é que o fado já no final do século XIX se afirmava como a música da autêntica alma portuguesa e, portanto, seu caráter ficava bem no hino pátrio.

Quando lançada em 1891, a canção concentrava o fervor patriótico antibritânico e acabou por ser proibida pelas autoridades. A semente revolucionária ali germinava, com um apelo às armas: a crescente consolidação do movimento republicano precisava ser arrefecido.

Sempre houve, porém, muita liberdade na execução de A Portuguesa. As autoridades do Estado Novo verificaram que havia uma profusão de arranjos, transposições e mesmo variações da partitura. Enfim, em 16 de julho de 1957, o Conselho de Ministros aprovou a versão definitiva que permanece inalterada. A Portuguesa foi designada como um dos símbolos nacionais de Portugal na constituição de 1976, constando no artigo 11, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

O talento de Alfredo Kiel imortalizou-se com sua bela melodia, mas esta acabou emascarando a amplitude e a abrangência de sua criatividade e produção artística. Ele não escreveu apenas aquele hino patriótico. Seu catálogo é vasto, incluindo até mesmo uma ópera: Serrana, de 1899.

O mesmo fenômeno aconteceu com o autor da letra. Henrique Lopes de Mendonça escreveu peças teatrais, vários contos e folhetins históricos. São suas as peças A noiva (comédia, 1884), O duque de Viseu (drama em versos, 1886) e Nó cego (drama, 1905).

Ao sair do prelo este número 6 da Nova Águia, já terá terminado a Copa do Mundo, e não mais veremos Cristiano Ronaldo cantar, na telinha, A Portuguesa. No momento em que escrevo este texto, Brasil, Portugal e Inglaterra já foram eliminados da Copa. Não veremos a equipe portuguesa enfrentar a equipe inglesa. É uma pena, porque eu gostaria imensamente de poder ver Cristiano Ronaldo dar dribles maravilhosos e enfiar tiros de canhão no gol inglês. Cristiano e seus valorosos companheiros iriam certamente marchar, marchar, contra os bretões.