Sectio Aurea na Música Eletroacústica

Prof. Dr. Jorge Antunes
Departamento de Música, Universidade de Brasília – antunes@unb.br

 

Resumo: O presente trabalho trata de estudos realizados no domínio formal e estrutural da música eletroacústica, em particular daquela de discurso sequencial em gradação. Nessa categoria, peças eletroacústicas se desenvolvem no tempo, com exposições de sucessivos e esporádicos pontos culminantes. Além do estudo do tema, no presente artigo relatamos experiência que demonstra a eficácia da divisão áurea na construção temporal da obra. 

Palavras-Chave: Música eletroacústica, número Φ, eloquência Eletroacústica.

Abstract: This paper poses researches developed in the formal and structural fields of electroacoustic music, specially with music that uses a discourse in sequential gradation. In this category electroacoustic pieces are developed in time, with expositions of sporadical and successive culminating points. Besides the study of this subjet, this paper describes an experience that demonstrates the efficacy of golden section in the time construction of the work.

Keywords: electroacoustic music, Number Φ, Electroacoustic Eloquence

 

  1. Introdução 

       Na pesquisa que viemos desenvolvendo nos últimos anos, no domínio da linguagem da Música Eletroacústica, fomos instados a dividir a tipologia do discurso musical em três categorias. Essas categorias são estabelecidas considerando a distribuição da quantidade de informação e a sintaxe dada aos semantemas musicais.

Ma proposition est de définir le sémantème musical – particulièrement dans le domaine de la musique électroacoustique – comme une espèce d’objet sonore qui est toujours un objet musical, parce que sa potencialité de signification, sa cohérence formelle interne, son pouvoir de communication et les émotions qu’il peut provoquer contiennent, garantisseent ou maintiennent sa musicalité, même quand il est isolé de tout contexte. (Antunes, 2001)

As três categorias:

1- Discurso caleidoscópico contínuo: tipo de discurso musical em que predominam elementos sonoros e objetos musicais que se sucedem de modo rápido e cambiante em sua quantidade de informação.

2- Discurso uniforme invariante: tipo de discurso musical com sucessão de elementos sonoros e objetos musicais, com permanente e igual quantidade de informação.

3- Discurso sequencial em gradação: tipo de discurso musical com sucessão de esporádicos pontos culminantes em gradação crescente ou decrescente, com aumento ou diminuição gradual da quantidade de informação.

       Durante o estudo da retórica e da eloquência na Música Eletroacústica, nos enveredamos na análise estrutural de obras do repertório eletroacústico, internacional e recente, que se enquadram na terceira categoria: o discurso sequencial em gradação, em que a estrutura pode sempre ser dividida, com critérios funcionais, em seções que se caracterizam pela tensão e pelo relaxamento. Ou seja, nos detivemos na análise de composições eletroacústicas em que pontos culminantes se sucedem, até a chegada a um clímax que leva o discurso ao desvanecimento em forma de relaxamento.

 

  1. Et Ignis Involvens

       Em uma das primeiras obras estudadas, encontramos uma fraseologia, bem equilibrada sob o ponto de vista da escuta não especializada, em que descobrimos a existência da proporção áurea. Referimo-nos à obra intitulada Et Ignis Involvens, do compositor português João Pedro de Oliveira.

       A harmonia construtiva e o equilíbrio formal evidenciados na escuta, nos levaram à hipótese de que essas qualidades poderiam ter, como uma das causas principais, o fato de que a divisão áurea está presente na elaboração temporal do trecho.

       A peça, com duração total de 3′ 50”, pode ser claramente dividida em seções. Cada seção pode ser dividida em períodos. Cada período, por sua vez, é integrado de frases, estas de notórios membros de frase, e cada membro de frase é formado de dois motivos.

       Na análise do primeiro período, que tem duração de 26,16 segundos, identificamos claramente duas frases: a primeira com 15,55 segundos, e a segunda com 9,61 segundos.

A figura 1 ilustra esse período dividido em frases, membros de frase e motivos.

Observe-se que a divisão desse período apresenta duas frases com durações que estão na proporção áurea:

9,61
––––––   = 0,618
15,55

       A primeira frase, com 15,55 segundos de duração, não obedece à razão áurea, pois seus membros de frase têm respectivamente as durações de 8,89 segundos e 6,66 segundos:

6,66
––––––   = 0,749
8,89

       Mas verificamos que o primeiro membro de frase, formado de dois motivos com durações de 5,49 segundos e 3,40 segundos, é dividido segundo a proporção áurea:

3,40
––––––    = 0,618
5,49

 

  1. O número Φ (Phi)

       A razão áurea é conhecida e estudada desde os tempos mais remotos. Na Grécia antiga a proporção era associada à divindade. Os pitagóricos identificaram a proporção no estudo da geometria, em especial nas dimensões das arestas do icosaedro e do dodecaedro.

Recordemos, em tratamento algébrico, como se verifica a divisão áurea.

|________________________|_____________|
                  u                                        v

O segmento acima estará dividido na proporção áurea quando u e v obedecerem as seguintes condições:

   u                v
–––––    =   ––––
u+v              u

Essa equação apresenta duas raízes:

x1 = 0,618

x2 = 1,618 =  Φ

E observemos que:  x1 = 1/x2

       O número Φ pode ser encontrado através de diferentes representações geométricas, com a construção do retângulo de ouro, da espiral logarítimica, da Série de Fibonacci e da Série de Luca.

       Ele, misteriosamente, é encontrado na natureza, quando são feitas medições no processo de crescimento das plantas e demais seres vivos, nos chifres de alguns animais, nas presas dos elefantes, na distribuição das sementes das plantas, nos caracóis, na configuração das escamas dos peixes, nas plantas da classe conífera, na nossa galáxia e até mesmo nos campos de futebol.

Il est intéressant de constater que les terrains de sport sont pratiquement tous, dans leur rapports longueur-largeur, dans la divine proportion. Cette réalité montrerait que le nombre d’or aurait em plus un côté fonctionnel. Jusque là les dimensions étaient données avec des marges laissées à la convenance des constructeurs. Les dimensions courants étaient de 105 m par 65 m ce qui donne un rapport K = 105/65 = 1,615 =  Φ.Depuis janvier 1999 le tracé de jeu est 105 x 68 d’où K = 105/68 = 1,544 ce qui augmente la largeur de 3 mètres (soit 45 millième). Nottons que la cage du gardien mesure 7,32m de large par 2,44 de haut ce qui correspond a un rectangle constitué de 4 triangles 3-4-5. (Vincent, 2001)

       Por tudo isso, a divisão áurea recebe os mais diversos nomes, tais como: sectio divina, nome dado por Luca Pacioli, monge do século XVI; sectio aurea, designação de Leonardo da Vinci; e divina proporção.

       Na natureza e nas artes o Φ tem sido identificado como “a divisão mais agradável ao espírito” e como sendo a “operação harmoniosa para os sentidos”. O número Φ foi usado em obras musicais de Beethoven, Wagner, Schoenberg, Bartok e tantos outros compositores.

       São de especial importância, no que se refere à evolução dinâmica das obras de Claude Debussy, as utilizações explícitas da divisão áurea, através da Série de Luca.

 As figuras 2 e 3 ilustram o uso da razão áurea em estruturas melódicas, respectivamente, de Beethoven e Wagner.

In Reflets dans l’eau, for example, the dynamics form an arch over the 94-mesure piece. Starting from pp, the music reaches its loudest level (greater than ff) at the beginning of m. 58 and begins to recede at the beginning of m. 62, reaching ppp by the end. M. 58 is the bar closest to the work’s golden mean, since 58/94 is equal to 23/47, which in turn is derivable from the Lucas series 3 4 7 11 18 29 47 … (all summation series, not just the Fibonacci, approximate the golden ratio). The climactic passage in mm. 57-61, as Howat points out, “lies over” the golden section, which occurs afyer 58 mesures, in other words at the beginning of m. 59. (Kramer, 1988)

       O número Φ é encontrado nas dimensões de inúmeras obras e monumentos em toda a história da humanidade, por ser considerado a mais perfeita relação de harmonia, segundo os conceitos de beleza. O Φ está nas medidas do Parthenon, na Mona Lisa de Leonardo da Vinci, nas pirâmides do Egito, em figuras geométricas, tais como o pentagrama (estrela de cinco pontas), o decágono, o dodecaedro e o icosaedro.

Muitos dos quadros de Pietr Mondrian foram elaborados com segmentos que se interceptam, obedecendo a divisão áurea.

S’il me fallait interpréter cette toile de Mondrian, je dirai symphonie en deux temps ou mesure musicale. Lignes verticales et horizontales n’ont pas été placées au hasard. Lorsqu’on mesure AB, le côté du carré, et qu’on le divise par 2 fois OH, la distance de O à la ligne verticale, on trouve 1,618, c’est-à-dire le nombre d’or. (Willard, 1987)

 

  1. Equilibrando formalmente uma obra eletroacústica

       Partindo das hipóteses e conceitos anteriormente expostos, empreeendemos a experiência principal a ser reportada no presente trabalho. Tomamos uma obra de curta duração do compositor mexicano Javier Alvarez, que se enquadra na categoria nº 3, de discurso sequencial em gradação. Trata-se da obra intitulada Los Archivos Panamá, que tem 3′ 41” de duração.

       A pequena peça é elaborada com um discurso em que sucessivos pontos culminantes são expostos com um gradual aumento da quantidade de informação. O ponto culminante mais importante, o clímax, acontece em momento bem longe do ponto em que a duração total se dividiria com a razão áurea.

       Em estúdio realizamos uma “cirurgia” na obra, extirpando trechos de pouca informação das partes intermediárias das seções. Eram trechos que poderiam receber a qualificação de “redundantes”. Esses cortes tinham como objetivo fazer com que o clímax da peça se situasse no exato momento em que se completasse o primeiro segmento da razão áurea.

       Apresentamos as duas versões para diferentes platéias, algumas de leigos, outras formadas por músicos, outra formada de estudantes de composição em últimos níveis. O resultado revelou uma intrigante unanimidade. Todos identificam a segunda versão como sendo “a mais equilibrada”.

       A figura 4 ilustra a “cirurgia”, feita com o uso da ferramenta crossover, com junção de um fade-in e um fade-out. Esse tratamento bem “cicatrizou” os cortes da “cirurgia”, garantindo uma continuidade perfeita dos elementos sonoros.

       No alto da figura 4 está a versão original da obra de Javier Alvarez, com 3′ 41” de duração. Na parte inferior da figura está a nova versão, em que a peça passa a ter 2′ 45” de duração, com seu clímax no ponto de divisão áurea.

       Na escuta das duas gravações, foi dada apenas uma informação: a de que seriam ouvidas uma mesma obra com duas versões diferentes. Após seguidas audições das duas versões em sequência, pedimos aos ouvintes que revelassem a versão preferida.

       Nas descrições individuais, que justificavam a preferência unânime pela versão reduzida, foram reveladas impressões semelhantes sobre a segunda versão: “mais equilibrada”, “mais interessante”, “mais concisa”, “mais expressiva”, etc.

 

  1. Conclusão 

       Os resultados da experiência nos levam à confirmação de hipótese que há bastente tempo é formulada intuitiva e empiricamente pelos mais diversos compositores ao longo da história. O discurso musical que se desenrola em processo de eloquência voltado à comunicação plena, com sintaxes que se realizam em esporádicos e sucessivos pontos culminantes, será mais efetivo e perfeito na medida em que o ponto culminante principal, o clímax, se realiza obedecendo à proporção áurea. Isso possivelmente será verdade pelo menos para obras de pequena duração, quando a percepção global é mais facilmente “congelada” na memória. O mesmo poderá acontecer para obras de longa duração, mas que se articulem em seções curtas. Talvez a constatação não se verifique a nível macroscópico, mas pode ser verificada de modo microscópico na escuta das seções que integram a obra.

 

Referências

Antunes, Jorge. Le sémantème musical. In: Emotion et Musique. Paris: Ed. EDK, 2001. p.15-23.

Kramer, Jonathan D. The Time of Music. Londres: Schirmer Books, 1988.

Vincent, Robert. Géometrie du Nombre d’Or. Marseille: Chalagam, 3e édition, 2001.

Willard, C. J.. Le Nombre d’Or. Paris: Ed. Magnard, 1987.

 

Agradecimento

Agradeço ao compositor mexicano Javier Álvarez, que autorizou a realização da experiência com a gravação de sua obra eletroacústica Los Archivos Panamá.